Falar sobre educação sexual e prevenção em um país que sofre as mazelas da colonização é complexo. Mas aprender sobre nossos corpos e sobre prevenção ainda é o principal e melhor caminho para evitar os estigmas, a desinformação e enfrentar as ISTs.

Por Vitor Ranieri, jovem participante da primeira turma da Pra Brilhar: Agência Educomunicativa PositHIVa

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Jovens da nossa geração já nasceram em uma época onde a internet democratizou, em partes, o acesso à informação. Se nossos pais tinham que cortar um dobrado para conseguir uma revista adulta, escondê-la e repassar para os amigos, nós já nascemos em um tempo em que a pornografia se encontrava a um clique de distância. Contudo, o texto que agora apresento não pretende discutir questões éticas ou epistemológicas sobre a pornografia, mas as sujeições dos corpos da juventude e como foi construído o imagético relacionado ao sexo em nosso país.

A diversidade sexual no Brasil pode parecer uma pauta nascida na atualidade, mas é muito mais antiga: ela existe, pelo menos, desde antes da época colonial. É o que mostram os antropólogos Estevão Rafael Fernandes e Barbara Arisi, no estudo “Índios gays no Brasil: Histórias não contadas da colonização das sexualidades indígenas”. Os pesquisadores partiram de relatos e crônicas históricas dos exploradores europeus e acabaram encontrando um grande número de acusações de “perversão sexual”, “sodomia” e “pederastia”. Segundo Fernandes, é possível afirmar que a liberdade e a diversidade de práticas sexuais não costumavam ser motivo de preconceito entre os próprios indígenas até a chegada dos colonizadores. A partir de um pensamento que logra compreender a modernidade diferentemente do que temos na historiografia ocidental, mas também atravessada por ela, é possível vermos o controle social por parte da igreja, da catequização e como, em busca da total repressão da luxúria, consequentemente, fomos reprimidos de falar sobre sexo.

A historiografia na Europa aponta como a inquisição e a mão pesada da igreja caiu sobre vários, inclusive sobre Giovanni Boccaccio, que escreveu o Decameron entre 1349 e 1351. Nas palavras do pesquisador Marco Antônio Lopes, Boccaccio foi uma espécie de “Galileu da pornografia, um digníssimo mártir da carne”. O maior ícone da pornografia ocidental chocava não apenas pela representação literária do sexo, mas pela representação dos desejos mais inconfessáveis dos seres humanos, o que posteriormente viríamos a chamar de “fetiches”. Giovanni nada mais fazia do que retratar coisas que via nas festas que participava, os desejos humanos que todos tinham, mas que jamais confessariam. Não há nada mais indomável que o ímpeto sexual humano e a história prova isso. A pornografia, em especial, foi e é considerada elemento imoral há séculos, principalmente após a hegemonia do cristianismo como padrão moral do ocidente. E a pornografia sobreviveu a todas as tentativas de repressão da história. Todas.

Não há código moral capaz de cessar o impulso humano pela representação do sexo.

Muitos séculos depois, mais precisamente no ano de 2018, em uma entrevista realizada com a juventude pelo pesquisador Matheus Leone, aqui no Brasil, território colonizado, que enxerga o sexo ainda como algo imoral e desnecessário de ser discutido em espaços educacionais, 78% dos entrevistados afirmaram não ter vergonha de dizer que assistem pornografia, o que nos mostra que a prática é um tabu muito menor entre os jovens do que obviamente era no passado. E podemos problematizar essa questão em diversos âmbitos, desde a indústria cinematográfica, veículos de comunicação ou os avanços da tecnologia no Brasil. Mas talvez, na sutileza, no intrínseco, ou de forma escrachada em nossos olhos, a falta de educação sexual e a repressão do próprio corpo sejam o estopim da vontade incessante e naturalizada da pornografia entre os jovens.

É indiscutível que a sociedade cristã lida com a pornografia de forma muito distinta dos povos helênicos, em especial os atenienses, e dos romanos. No caso dos helênicos, como nos diz o texto A (indiscreta) história da pornografia, de Marco Antônio Lopes, a representação não apenas da nudez, mas também do sexo, era elemento corriqueiro.

Estátuas nuas, cenas de sexo representadas em cerâmicas e até mesmo concursos faziam parte da sociedade. De lá pra cá, a tecnologia se encarregou de deslocar a pornografia do oculto para uma das maiores indústrias mundiais. Algo que gira bilhões e bilhões de dólares anualmente, apenas nos Estados Unidos. Segundo estimativas da professora de Sociologia da Universidade do Novo México, Kassia Wosick, a gigantesca indústria da pornografia hoje alcança um valor de quase 100 bilhões de dólares (algo como 20 programas do Bolsa Família, que chegou a atender cerca de 14 milhões de lares brasileiros).

A indústria pornográfica provém do capitalismo, e a centralidade das discussões sobre sexo não é algo que queiram discutir, justamente porque não é lucrativo. Como você já deve ter ouvido, a informação é cara e custa caro aos que querem que não tenhamos autonomia sobre as nossas vidas, sobre os nossos corpos. 

Segundo o UNAIDS, no guia técnico para educação sexual: “Educação sexual é um programa de ensino sobre os aspectos cognitivos, emocionais, físicos e sociais da sexualidade. Seu objetivo é equipar crianças e jovens com o conhecimento, habilidades, atitudes e valores que os empoderem para: vivenciar sua saúde, bem estar e dignidade; desenvolver relacionamentos sociais e sexuais respeitosos; considerar como suas escolhas afetam o bem estar próprio e dos outros; entender e garantir a proteção de seus direitos ao longo da vida.”

Entre a incidência escolar, não saber onde estamos e o que sentimos, o sentimento de não saber lidar com nosso próprio corpo e entender ao que estamos sujeitos, o Google carrega muito mais informação sobre o corpo jovem do que o próprio jovem.

Ser educado sobre seu corpo e para a prevenção é o principal e melhor caminho para evitar a gravidez na adolescência e as infecções sexualmente transmissíveis porque, além de informar sobre o funcionamento e cuidado do corpo, as transformações da adolescência, os métodos contraceptivos e preventivos para ISTs, a educação sexual também ensina sobre consentimento e dá letramento para enfrentar a cultura do estupro, dando caminhos para as vítimas denunciarem, além de contribuir para a construção de uma sexualidade saudável, independente do gênero.

O papel dos mecanismos que fornecem técnicas e formas para a reversão desse cenário é essencial e é uma questão de protagonismo público. No entanto, o Brasil hoje não conta com uma legislação que obrigue as escolas a ensinar sobre o tema. É preciso que, cada vez mais, a juventude se empodere desses saberes para assumir o protagonismo de sua sexualidade e tenha acesso garantido ao sistema público de saúde e todas as tecnologias de prevenção, diagnóstico e tratamento de ISTs que estão disponíveis de forma gratuita.

Nessa série de textos que publicamos ao final do ciclo formativo da Pra Brilhar: Agência Educomunicativa PositHIVa, nós buscamos, enquanto juventude dissidente, entender como funciona parte da rede de serviços – organizações sociais, equipamentos de saúde e poder público – que vem atuando no acolhimento das populações chave da epidemia de HIV/aids (em especial a juventude LGBTQIAP+, preta e periférica que vive em São Paulo), na disponibilidade de tecnologias de prevenção combinada, diagnóstico e tratamento do HIV e outras ISTs, e a atuação da Câmara Municipal diante do avanço da aids entre a juventude.

Falar sobre educação sexual e prevenção em um país que sofre as mazelas da colonização é complexo. Ou seja, tentar discutir sobre educar crianças e jovens sobre sexo com quem exerce a lei é adentrar em uma discussão política que é perseguida por setores conservadores, que adentram o debate muitas vezes sem qualquer aprofundamento ou informação. Por isso, torna-se necessário que cada vez mais a educação sexual seja discutida e se torne pauta popular, de utilidade pública, porque frases mal colocadas sem contexto não contribuem em nada; pelo contrário, só alimentam o tabu e os valores da moralidade irreal brasileira.

A culpa, a desinformação e, claro, a perpetuação do silêncio, recaem sobre a própria juventude quando os fios de cabelo se encostam nos travesseiros ao entardecer, quando tudo se torna pesado e remoemos a piada de sexo na escola, que nem sequer sabemos o que significa. Porque a desinformação silencia. E a juventude precisa estar protegida das problemáticas que a falta de discutir sobre sexo traz. Problemas que se enquadram em aspectos de saúde pública, evasão escolar, desigualdade sexual, entre muitos outros. Por fim, enquanto políticas de educação sexual e prevenção combinada não forem vistas com a importância necessária, vão continuar existindo as barreiras sociais que podem ser quebradas através da educação, do autocuidado e da prevenção.