Interseccionalidade

Masculinidades e Homossexualidades numa perspectiva Interseccional

Por Rodrigo Cruz

Em uma conversa recente com amigos gays, comentávamos sobre o filme Me chame pelo seu nome (2018) do diretor Lucas Guadagnino, baseado no livro do escritor André Aciman (2007). Falávamos sobre as impressões de cada um a respeito da obra, um sucesso de público e de crítica tanto nos cinemas quanto nos meios literários. O filme conta a história de Elio (Timothée Chalamet), um adolescente de 17 anos de férias na Itália em meados dos anos 1980, que se envolve amorosamente com o assistente acadêmico do seu pai Oliver (Armie Hammer), um rapaz americano de 24 anos. As opiniões ao redor da mesa foram bastante variadas. Se eu dissesse que o filme não é agradável aos olhos e aos ouvidos, eu estaria mentindo. A fotografia e a trilha sonora são impecáveis. Os atores são acima da média. Há ainda momentos de extrema sensibilidade, entre os quais eu destacaria o monólogo do pai de Elio no final do filme. Mas para além do prazer estético, que não deixa de ser importante quando desfrutamos de uma obra cinematográfica, eu tive alguma dificuldade de me conectar com um filme cujos protagonistas são dois rapazes brancos, bonitos, masculinos e nascidos em meios sociais abastados e intelectualizados. Os pais de Elio inclusive incentivam o garoto a viver um romance com o bonitão Oliver. Um luxo para poucos, não é mesmo?

Essa representação um tanto quanto “chapada” da homossexualidade na TV, na literatura e no cinema é algo que me incomoda há bastante tempo. Como jovem gay, afro indígena e vindo de uma família de classe média baixa da periferia de Belém, eu raramente tenho a oportunidade de me reconhecer nos produtos culturais que eu consumo. Para ser honesto, um episódio do reality show RuPaul’s Drag Race com histórias de jovens gays negros e suas dificuldades para fazer drag numa cidade conservadora de maioria no interior do Texas dialoga mais com a minha realidade do que qualquer outro filme “LGBT” do catálogo da Netflix, cujos protagonistas provavelmente são rapazes brancos de Nova Iorque. A verdade é que falta sensibilidade da indústria cultural (e da sociedade de forma geral), para compreender que não existe apenas uma homossexualidade (no caso, a homossexualidade masculina dominante, branca, de classe média, intelectualizada e masculinizada), mas inúmeras homossexualidades, que são informadas a partir de outros marcadores sociais como classe, raça, etnia, religião, nacionalidade, gênero e expressão de gênero, só para citar alguns exemplos.

E o que isso quer dizer? Que homens gays negros e periféricos tendem a vivenciar a homossexualidade de uma forma bastante diferente daquela que será experienciada por um adolescente gay branco de um bairro nobre.

O filme Moonlight – Sob a luz do luar, vencedor do Oscar de melhor filme em 2017, retrata essa questão de forma bastante exemplar. Longe da narrativa do conto de fadas gay, que quase sempre termina em superação e aceitação (de si mesmo e da sociedade ao redor) ou da tragédia comum (com o protagonista gay morto na conclusão do filme, afinal homossexuais estão destinados a serem infelizes), Moonlight mostra como a subjetividade do homem gay, negro e periférico é constituída ao longo da vida sob as marcas da violência racista, da constante desumanização do corpo negro, da cobrança por um ideal de masculinidade tóxica, pela ausência de uma estrutura familiar sólida e pela falta brutal de perspectivas imposta pela pobreza – o que escancara imediatamente as relações intrínsecas entre raça e classe.

Contudo, o que eu acho mais brilhante em Moonlight é que em nenhum momento a raça ou a orientação sexual são apresentados como o fator “mais importante” ou “decisivo” para explicar a trajetória de opressão do personagem principal. Ele não se sente excluído somente apenas por ser negro, mas por ser negro e gay num contexto periférico altamente vulnerável, num mundo igualmente racista e homofóbico e cheio de estereótipos desumanizantes sobre o homem negro. É a partir dessa perspectiva que o filme captura o efeito da intersecção entre essas duas formas de exclusão, o racismo e a homofobia, mostrando como essas duas estruturas atuam juntas, se interpelam, se informam e se articulam para manter uma mesma matriz de dominação.

Nas ciências humanas e sociais, muitas pesquisadoras e pesquisadores tem investigado as consequências desse tipo de “cruzamento” entre marcadores sociais a partir da abordagem interseccional. O conceito de interseccionalidade foi assim nomeado pela advogada, professora e ativista negra estadunidense Kimberlé Williams Crenshaw, no final dos anos 1980. Ela propôs o termo para analisar as diferentes formas de violência vividas por mulheres negras e pobres nos Estados Unidos, fruto da interação entre duas ou mais formas de subordinação, como o sexismo, o racismo e o preconceito de classe. O uso da palavra “interação” tinha como objetivo superar a noção da chamada “superposição de opressões”, segundo qual uma mulher negra era vista enquanto “duplamente oprimida”. Não se tratava, portanto, de uma tentativa de dizer que uma mulher negra era “mais oprimida” que uma mulher branca, mas de explicar como a raça tornava a experiência do sexismo bastante diferente para mulheres negras se comparada com aquela vivida por mulheres brancas.

De lá para cá, o conceito de interseccionalidade recebeu inúmeras contribuições e tornou-se uma ferramenta teórica fundamental para entendermos como operam as desigualdades em contextos sociais cada vez mais complexos. Embora tenha sido aplicado originalmente para compreender a opressão sofrida pelas mulheres negras, o conceito tem sido amplamente agenciado para a análise de outros objetos de investigação, inclusive para a compreensão das masculinidades. Politicamente, se tornou um instrumento de análise poderoso da realidade por parte dos movimentos sociais, servindo de base para a proposição e elaboração de políticas públicas.

Creio que, nas nossas vivências enquanto homossexuais, precisamos cada vez mais recorrer ao conceito de interseccionalidade para pensar de que forma os vários marcadores sociais que nos são atribuídos e as várias experiências que acumulamos ao longo da vida (o ato de imigrar, por exemplo, ou de ter sido criado por uma família católica ou evangélica) contribuíram ou continuam a contribuir para a formação da nossa subjetividade e também para determinar as nossas trajetórias enquanto indivíduos. Ao adotar essa perspectiva, poderíamos ainda interrogar de forma crítica as desigualdades que permeiam a própria comunidade LGBT (a constante desvalorização dos gays afeminados e das identidades trans, a busca por ideais de beleza relacionados à branquitude, a magreza e ao sucesso profissional e financeiro etc.), contribuindo para construir um ambiente mais seguro, igualitário e inclusivo.


Rodrigo Cruz é jornalista e sociólogo, doutorando em Sociologia pela Universidade Nova de Lisboa (Portugal).

André Cabette Fábio é jornalista e cartunista. Trabalha no Nexo Jornal, foi cenógrafo da peça ‘Brilho Raro’, é autor do quadrinho independente ‘Dor e Febre’ e faz as peças gráficas de divulgação da festa Querida Intriga.